sábado, maio 31, 2008

O Surrealismo e a Música - Genesis

Depois do post inicial sobre esta temática ter sido escrito no dia 8 de Janeiro e o segundo no dia 23 de Fevereiro, cumpro aqui mais uma etapa da minha promessa.

A banda de Rock-Progressivo Genesis deu-nos, em 1974, um dos maiores exemplos de álbum conceptual surrealista, com o enorme The Lamb Lies Down on Broadway, que marcou também o final da ligação de Peter Gabriel com a banda. Na história escrita por Gabriel, o personagem principal é o jovem Rael, que se vê num mundo com criaturas bizarras para tentar salvar o seu irmão John. Em relatos do próprio Gabriel, muitas das situações, pormenores e locais derivam directamente dos seus sonhos, o que põe este trabalho num registo claramente surrealista, se tomarmos como certo o Sonho como uma das bases fundamentais da criação artística do Surrealismo.

Vamos então fazer uma viagem lírica através deste álbum, analisando algumas letras do álbum, começando pela faixa 1, The Lamb Lies Down on Broadway (O Cordeiro Deita-se na Broadway):

Night-time's flyers feel their pains
Drug store take down the chains
Metal motion comes in bursts
But the gas station can quench that thirst

(Os voadores da noite sentem as suas dores
As drogarias eliminam as correntes
Movimento metálico fica em chamas
Mas a bomba de gasolina pode arrefecer essa sede.)

Usando as já usuais referências à Pintura, posso referir as paisagens obscuras de James Gleeson. Voltando de novo à música, avançamos com a já aqui falada Carpet Crawlers (Rastejadores do Tapete):

Mild mannered supermen are held in kryptonite,
And the wise and foolish virgins giggle with their bodies glowing
Bright.
Through a door a harvest feast is lit by candlelight;
Its the bottom of a staircase that spirals out of sight.
The carpet crawlers heed their callers:
We've got to get in to get out (x3)

(Superhomens de modos suaves estão dominados na kryptonite,
E prudentes e tolas virgens gargalham com seus corpos ardendo de desejo.
Através de uma porta uma festa da colheita é iluminada por um candeeiro;
No inicio da escada que foge da visão em espiral.
Os rastejadores do tapete atendem quem os chama:
Nós temos que entrar para sair/escapar (x3) )

Mais uma vez uma autêntica visão apocalíptica é o que nos apodera quando dissecamos esta letra. Saltando agora para a última música do álbum, a agradável It:

It is the jigsaw. It is purple haze.
It never stays in one place, but it's not a passing phase,
It is in the singles bar, in the distance of the face
It is in between the cages, it is always in a space
It is here. It is now.

(É a serra. É a neblina púrpura.
Nunca fica num só sitio, mas não é uma fase de passagem,
Está nos bar de solteiros, na distância da cara
Está entre as jaulas, está sempre num espaço
Está aqui. Agora.)

Versos de uma cadência impressionante, encriptados com metáforas dignas do génio de Gabriel. Em toda a obra da banda, mas principalmente nesta obra-prima de Peter Gabriel, o Surrealismo encontra-se mais uma vez com a música. E de uma forma extremamente acessível.

Devido a erros com o Boomp3, não vos consigo dar música. No entanto deixo-vos o link para as duas primeiras músicas:
The Lamb Lies Down on Broadway
Carpet Crawlers

19 comentários:

Tiago Estêvão disse...

Se bem que me parece que o surrealismo encontra a sua menos notável forma de expressão na música.

António Pita disse...

Não concordo muito com isso. O Breton descartava um bocadinho a música e dizia que a a literatura e a música se deviam fundir num só. Ao nível literário. Eu se tivesse de avançar por aí, escrevia uma música para todos os livros, em vez de calar a melodia de vez.

Mas a grande discussão é se pode haver mesmo uma Música Surrealista, porque o surrealismo pressupõe por de lado construções lógicas e reflectidas. Será que se compõe assim? Escrever assim - escrita automática - é possivel. Mas compor? E o improvisso? É a questão que vai ficar sempre no ar.

André Forte disse...

existe uma prática de escrita que é bastante semelhante àquilo que tu referes como "escrita automática". há uma grande obra resultado dessa escrita de enxurrada: Os Cantos de Maldoror.

No entanto, tenho dúvidas quanto à aplicação dos pressupostos do surrealismo. Ainda assim, não descarto a possibilidade da existência de uma arte surrealista, nem tampouco de música que tenha ligações com essa corrente. A questão que me parece dificultar - assim de repente - essa associação é a tendência da música de ser um reflexo do homem e não dos seus sonhos (sonhos sonhos, e não aspirações/desejos), ou seja, de ser utilizada para falar de um estado concreto de um grupo/individuo ou da vontade de alterar esse estado - e aqui podemos introduzir o conceito de música de intervenção.

A outra grande questão é a de a música se ter separado das demais correntes artísticas com a alteração das escalas: das diatónicas utilizadas na música dita clássica e oriunda do berço da civilização dita ocidental, a Grécia, passou-se para as pentatónicas, originalmente utilizadas nos países da costa oeste africana (onde se encontram as raízes do blues). Não acho que esta seja uma cisão total, mas é algo a ter em conta nesta dificuldade de relacionamento entre as correntes "musicais" e as correntes artísticas. Levantam-se outras questões sobre a construção dessa relação, ainda que perfeitamente inúteis, mas realmente interessantes para a criação de música realmente nova.

É só uma opinião...

António Pita disse...

Acho que se está aqui a fugir um bocado ao que pretendo. O que eu pretendo nisto é chamar a atenção para a poesia de Gabriel, Waters, entre outros que viram a seguir, e não propriamente discutir a composição. Claro que também se toca aí, mas quero incidir principalmente na parte lírica.

Quando à aplicação dos pressupostos do Surrealismo, eles foram aplicados, e bem. Os filmes do Dali e do Bunuel são claramente a primeira merda que lhes passou pela cabeça. Assim como os livros a meias que dois homenzitos escreveram, uma página um, outra página outro. Como devem imaginar aquilo no fim era a revienga total e completa!

Quanto às escalas, conheço isso apenas de maneira cronológica e não profundamente, e como não sou músico não sei as implicações reais dessa mudança. Mas se dizes isso, acredito.

Tiago Estêvão disse...

Bem, tirando a escrita automática não existe nenhuma (e sou categórico neste aspecto) forma de escrita que não envolva a racionalização. Paradoxalmente, mesmo o absurdo e o irreflectido são pensados. Acho que a questão não passa pela racionalização mas pela tentativa de permeabilidade do subconsciente na obra do artista.

E quanto a achar a música como forma mais fraca forma de expressao surrealista tal prende-se com o facto de a matéria dos sonhos não envolver sons. É principalmente a imagem que fica. Neste sentido, a própria literatura enfermaria do mesmo problema. Acontece que nesta o espaço para criar imagens através de palavras é menos limitado e, também ele, mais eficiente. Para além do mais não enferma do facto de ter uma espécie de banda sonora que não se encaixa nas letras. Posto isto assim justifico a minha opinião.

António Pita disse...

Mas as palavras das músicas que refiro ganham outro valor com a melodia. Acho que isso é categórico. Pode ser pretencioso, como quem diz, "já imaginei o som que está colado a estas palavras".

E o Surrealismo não pode ser fechado no canto do Sonho. Há muitos outros pressupostos, as parvoices do Freud, as parvoices do funcionamento real do pensamento, etc, etc. E o improviso não é mais do que música surrealista.

E o André que gosta dos Situacionistas, não se pode esquecer que eles provêm do Surrealismo. Com facções contra e a favor, isso é certo. Mas descendentes.

Tiago Estêvão disse...

Pois não. Mas talvez seja esse o maior ponto em que os Genesis por exemplo se aproximam deste movimento que claramente os influenciou mas que eles (isto é a minha opinião, não é de fiar) nunca integraram realmente, uma vez que as associações são lógicas dentro do irrealismo. Há influência da razão nas letras deles, é inegável, parece-me, e há uma preocupação moral e estética. Também não recorrem aos puros automatismos físicos. A própria improvisação dele é controlada. Há desvios nos Genesis, certo, mas seguem a norma.

Por último, o facto de achar que a música é a forma mais fraca de expressão surrealista não quero dizer que ela não exista, ou que seja deficitária. Mas em questões comparativas há sempre quem saia a perder.

Tiago Estêvão disse...

Só uma rectificação antes de me chacinares Pita. Na essência não há música surrealista mas ela acaba por existir na medida em que é uma expressão commumente e largamente aceite. O último parágrafo do meu coment anterior não estava bem claro quanto a este ponto

António Pita disse...

Sim, começo esta brincadeira toda por dizer que não há aquilo a que se possa chamar de música surrealista. E esta resma de posts são um exercicio de aproximação entre a música e o surrealismo que eu tentei fazer. Inicialmente mais curto e não para o Stage, mas depois pensei e achei que poderia ser interessante. Acho que estas discussões provam que o era.

Ainda vou tentar encontrar - porque acho que o Frusciante fez um ensaio desses - música sem qualquer tipo de preocupação estética e moral. Pelo menos sem muita preocupação.

Aquilo que aparece escrito nos posts é muito da minha responsabilidade, por isso posso meter bastante a pata na poça, e vir aí um gajo que percebe realmente disto e mandar-me deitar, mas opá, na FLUC deixam-me!

André Forte disse...

só um ponto: os Situacionistas não provêm do Surrealismo, mas sim do Dadaismo. Eles consideram, mesmo, que a partir daí a arte entrou em declínio. Isto é impreciso, até porque as considerações dos situacionistas são complexas e vastas, e as suas fortes críticas eram dirigidas para tudo o que mexia e não me parece que a própria Internacional Situacionista estivesse imune. Só para... coiso.

Depois, e com todo o respeito que te é devido, caríssimo António, se o teu objectivo está directamente ligado com a vertente lírica da música, acho que escolheste uma boa obra, mas também acho que se a abordasses de forma diferente tornavas mais claro o teu ponto de vista. Basta ver que a história do Lamb Lies, escrita pelo Gabriel, é um conto que se podia enquadrar naquilo a que tipicamente se chama "Kafkiano", pelo desenlace, pela simbologia, pela crítica social e pelas metáforas que se encontram nos momentos mais surreais e improváveis de acontecer fora de um sonho. E as letras acabam por perder porque correspondem a normas de métrica e de melodia que as condicionam, algo que pode dificultar a percepção desse grande pormenor. Eu não considero que a adaptação, pela parte do Gabriel, do texto à música foi um falhanço: longe disso, foi extremamente bem conseguido; mas também considero que é preciso ter em conta o original e os moldes em que foi escrito.

Musicalmente, a fase final do álbum, antes da It, tem coisas perfeitamente experimentais, ultrapassando mesmo o experimentalismo típico de uns Pink Floyd, exagerando-o e tornando quase incomodativo - algo que tornou essas sonoridades moldes para as bandas do progressivo e do psicadélico mais descomprometido de agora, como Mars Volta e Hrsta.

António Pita disse...

Isso do Surrealismo e Dadaismo é praticamente demagógico. Não é batata, é puré de batata. Mas ok.

A história toda do Lamb Lies não cabia aqui, e também não me interessa expor os significados por detrás das metáforas. E o que me interessa, e acho que isto ainda não está claro, é a proximidade com o Surrealismo. As letras dos Mars Volta são surrealistas, e no entanto estão de acordo com uma lógica própria e têm um fio condutor. Eu não conheço tudo, nem grande parte, e tento dar um bocadinho do que sei. Daí dizer que isto é uma coisa muito pessoal, que pode estar completamente errada.

E os experimentalismos e o psicadelismo - que pode estar associado a algo surrealista - é secundário aqui, porque como já disse, interessam-me mais as letras, as palavras, e não tanto a música em si. Pelo menos neste caso.

Anónimo disse...

Bem, letras pr'aqui, letras pr'ali, o certo certo é que eu tenho um vinyl desses senhores, já bastante antiguinho, da época de jovem do meu Pai! Espero que isso seja uma coisa boa! xD

André Forte disse...

só fiz a distinção entre surrealismo e dadaismo porque para os situacionistas, provavelmente, o situacionismo já era decadente. Mas é como disse antes, eles consideravam muito...

Sim, eu sei que a história não cabia aqui, que eu já a li e explorei aos saltos e etc. E percebi onde querias chegar, naturalmente, e acho sem dúvida que é um estudo de valor. Só que, como disse, acho que é mais complicado analisar o Lamb Lies dessa forma. Bem sabes que eu até simpatizo contigo...
E vá, desisto das sonoridades, que tu lá não gostas disso :P (sobre Mars Volta lá estamos nós de acordo.)

E, alergias, é uma obra-prima. Para mim é o topo do progressivo.

André Forte disse...

só fiz a distinção entre surrealismo e dadaismo porque para os situacionistas, provavelmente, o situacionismo já era decadente. Mas é como disse antes, eles consideravam muito...

Sim, eu sei que a história não cabia aqui, que eu já a li e explorei aos saltos e etc. E percebi onde querias chegar, naturalmente, e acho sem dúvida que é um estudo de valor. Só que, como disse, acho que é mais complicado analisar o Lamb Lies dessa forma. Bem sabes que eu até simpatizo contigo...
E vá, desisto das sonoridades, que tu lá não gostas disso :P (sobre Mars Volta lá estamos nós de acordo.)

E, alergias, é uma obra-prima. Para mim é o topo do progressivo.

André Forte disse...

só fiz a distinção entre surrealismo e dadaismo porque para os situacionistas, provavelmente, o situacionismo já era decadente. Mas é como disse antes, eles consideravam muito...

Sim, eu sei que a história não cabia aqui, que eu já a li e explorei aos saltos e etc. E percebi onde querias chegar, naturalmente, e acho sem dúvida que é um estudo de valor. Só que, como disse, acho que é mais complicado analisar o Lamb Lies dessa forma. Bem sabes que eu até simpatizo contigo...
E vá, desisto das sonoridades, que tu lá não gostas disso :P (sobre Mars Volta lá estamos nós de acordo.)

E, alergias, é uma obra-prima. Para mim é o topo do progressivo.

André Forte disse...

só fiz a distinção entre surrealismo e dadaismo porque para os situacionistas, provavelmente, o situacionismo já era decadente. Mas é como disse antes, eles consideravam muito...

Sim, eu sei que a história não cabia aqui, que eu já a li e explorei aos saltos e etc. E percebi onde querias chegar, naturalmente, e acho sem dúvida que é um estudo de valor. Só que, como disse, acho que é mais complicado analisar o Lamb Lies dessa forma. Bem sabes que eu até simpatizo contigo...
E vá, desisto das sonoridades, que tu lá não gostas disso :P (sobre Mars Volta lá estamos nós de acordo.)

E, alergias, é uma obra-prima. Para mim é o topo do progressivo.

António Pita disse...

Porque 6 vezes ?? =D

Eduardo Negrão disse...

um argumento x 6 torna-se sempre muito mais poderoso. Contrapões com "Porque 6 vezes ?? =D", ou seja, colapsaste mentalmente nesta fase :D
Mas pensei que aguentasses até as 7... pelo menos

André Forte disse...

entusiasmei-me, desculpem. isto de ser intelectual a part-time exalta-me.

uma explicação mais natural tem a ver com o facto do meu browser ter marado, tal como eu que me pus a clicar feito parvo.

mas é como o negrão diz, colapsaste com a minha insistência! \oo/