O Correiro da Manhã não é uma leitura aconselhável. Se me sinto culpado de o ler? Não: as melhores reportagens de música que tenho lido nos media mainstream portugueses são editados lá (surpreendentemente?). Por exemplo, a melhor cobertura dos festivais de verão do ano de 2007 foi feita por este jornal, que nem especializado em música é (e eis a grande supresa: os media especializados não fazem sequer o seu papel jornalístico, fazendo publicidade aos seus produtos e mostrando-se claramente tendenciosos).
Eis um excerto da curiosa e bem conduzida entrevista feita a José Mário Branco para o "Correio Êxito" (suplemento do jornal em questão) da semana passada, publicado no dia 5:
«Correio Êxito – Em 1994 foi abordado pelo então Presidente da República, Mário Soares, no sentido de receber a condecoração da Ordem da Liberdade. Por que é que recusou?
José Mário Branco – Porque o condecorador tem de ser digno do condecorado. Não aceito distinções oficiais de um Estado que corporiza a sociedade injusta em que vivemos.
(...)
– Tem sido prejudicado por assumir pública e frontalmente as suas posições políticas?
– Quem vai à guerra dá e leva. Sou contra o sistema e, naturalmente, o sistema não me dá muito espaço.
(…)
– É verdade que afirmou: “Não fui à Expo’98 porque achei que uma iniciativa daquelas, num País como o nosso, foi um insulto aos pobres”?
– Sim. Recusei a proposta mais cara que alguma vez me fizeram. As minhas convicções não estão à venda.
– A sua canção é uma arma?
– No sentido de ser uma forma de intervir na sociedade qualquer canção é uma arma. Quando me fazem perguntas sobre o canto de intervenção, respondo que acho essa designação inadequada. Qualquer canto é uma forma de intervir.
– O seu canto é inquietação?
– É evidente que nisso, como em tudo o resto, vamos por tentativas, por esforço, tentando aprender com os enganos. A inquietação resulta de nós fazermos isso com a presença da dor, algo que me é insuportável.
– São sintomas da fase em que viveu no exílio?
– O exílio é uma coisa muito má, em que se tem saudades e se está muito revoltado contra esse afastamento das pessoas e dos sítios que gostamos. Por outro lado, durante os 11 anos em que estive exilado vivi coisas muito boas e muito bonitas.
– Como por exemplo?
– O nascimento dos meus dois filhos, o Maio de 68, o surto do espírito libertário, que está relacionado com os meus sentimentos humanísticos. Mas fiquei zangado com essa parte da minha vida, e Paris paga por tabela.
– Usando um chavão: Comeu o pão que o diabo amassou?
– Estávamos inseridos numa sociedade e num mundo que era a preto e branco. Em Portugal nada era a cores. Não é normal uma pessoa aos 18 anos ter que tomar decisões que são definitivas para toda a vida. Decisões que tinham um preço. Se queria exprimir-me livremente, associar-me, ter iniciativas com os meus amigos ou cantar publicamente sabia que isso tinha um preço. Se tinha, por causa das minhas convicções, uma recusa em participar na guerra colonial, sabia que isso tinha um preço. E teve um preço que foi não só ter que fugir do País mas zangar-me com pessoas que aparentemente deviam estar de acordo comigo.
(...)
– O preço que pagou foi demasiado alto para o retorno?
– É tudo relativo. Quando existe injustiça na sociedade, desigualdade, guerras, prisões ou perseguições, temos uma sensação que parece antagónica. Por que é que o Bush, como ser humano que é, não pensa no que está a fazer? Porque dá a ideia que se ele caísse em si percebia que é horrível matar um milhão de pessoas que não têm culpa nenhuma. As desigualdades, o racismo, a xenofobia em relação aos imigrantes têm um lado irracional. A par disso há a noção de que é preciso lutar para mudar essas coisas pois no fim dessa luta poderá estar uma sociedade um bocadinho melhor. Em mim há estes dois lados que estão sempre a lutar um contra o outro.
– A integração na Europa desvirtuou esses dados?
– Como diria o outro, nem sim nem não, antes pelo contrário. A Europa é um fenómeno de globalização capitalista que não está feita para as pessoas mas para as empresas, para os bancos, para os grandes grupos económicos. Está feita para regular este mercado enorme e para o dinheiro.
(...)
– Considera que a sua música conseguiu dar voz a toda essa gente e abanar a incaracterística pobreza da canção urbana?
– Num certo aspecto deu. Se bem que não se possa dizer que a história da nova canção portuguesa começou aí.
– Pode dizer-se que o José herdou de Zeca Afonso?
– Eu, o Fausto, o Sérgio, e outros, somos filhotes do Zeca. No meu caso, no do Sérgio e de outros, posso dizer que começámos a fazer canções estimulados pela criatividade do Zeca.
(...)
– A vossa música foi uma força catalizadora dos nossos esparsos valores culturais [.] Portugal não está carente, ou distante, desses valores?
– Embora continue a existir o cacete e a prisão, estamos numa época em que o principal factor de opressão é o cinzentismo. As pessoas estão todas sozinhas, mesmo que dentro das mesmas casas, em frente ao ecrã, computador, telemóvel. Tudo o que seja pôr as tripas cá para fora ou mobilizar energia para acordar as pessoas desta letargia é subversivo.
– Foi o que fez com o ‘FMI’?
– É esse aspecto da energia, de um certo despudor e de gritos viscerais que podem ajudar a despertar a malta que anda a dormir.
– É um álbum confessional, o confronto do revolucionário com o refluxo da revolução?
– Cada vez mais estou convencido de que ninguém é capaz de fazer uma revolução se não a fizer também por dentro.
(…)
– O seu critério político está à frente do artístico?
– Não. Desde muito novo que estive ligado a iniciativas políticas, a partidos e movimentos, mas dificilmente alguma vez na vida separei uma coisa da outra. Na última vez em que falei em nome do Bloco de Esquerda já estava a perceber que aquela casa, que era de pessoas que se estão a acomodar perante o sistema, que não querem mudar a sociedade mas reformá-la, não era compatível com o meu radicalismo. Nunca saí de partido nenhum. Os partidos é que vão saindo de mim.
(…)»
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