Diogo Duarte, do Sismógrafo
É bem sabido que o excesso de festivais que começam a haver em Portugal e o esgotamento das grandes reservas de ouro musicais provocado pelo Superbock Superrock, acabam por desequilibrar em grande medida os cartazes daqueles que foram os primeiros eventos do género a ser realizados em Portugal. Por isso, o festival do Sudoeste já teve cardápios mais consensuais do que o desta 11ª edição. Mas que não se julgue que foi por isso que deixou de reunir um bom número de grandes nomes com capacidade para justificar a deslocação de milhares de pessoas à Herdade da Casa Branca. E a prova disso mesmo é que o primeiro dia deste edição bateu o record de afluência aos dias de abertura dos festivais, com 40 mil pessoas a receber Manu Chao e Damian Marley.
Eu não fazia parte da camada da população psicologicamente afectada com a necessidade de me deslocar à Zambujeira do Mar, mas a oportunidade surgiu e não e hesitei. Contrariando as minhas previsões iniciais, o balanço final é bastante positivo e guardo comigo uma série de concertos memoráveis. O festival do Sudoeste, não fornecendo um cartaz muito equilibrado, tem a vantagem de reunir um número muito diversificado de bandas e estilos diferentes, e isso acabou por ser fundamental para esta opinião.
O primeiro dia do festival era, sem dúvida, o mais rico em termos de cartaz, contando com nomes como Gilberto Gil, Damian Marley e Manu Chao no palco principal ou The Noisettes e Camera Obscura no palco “Planeta Sudoeste”. Contrariamente aos dias que se seguiram, em que alternei mais entre os dois palcos, foi no principal que concentrei as minhas atenções. Comecei o dia com uma visita ao palco secundário para ver Claud, uma cantora de rosto forte que dissertava sobre ódio, cozinha e cacilheiros ao som de música electrónica e música tradicional portuguesa, e as outras visitas que registei ao mesmo palco serviram apenas para dar uma espreitadela a Lonely Dear e a Wraygunn. Com os primeiros fiquei-me por esta observação do vocalista: “estamos muito contentes por estar nos confins da civilização, e sim, sabemos tudo sobre vocês. Obrigado por virem receber este grupo de americanos”. Depois desta tentativa de mensagem simpática que provavelmente se assemelharia a algo que uma civilização superior extraterrestre diria em contacto com os hábitos estranhos dos terráqueos, achei que o melhor era ir dar uma volta e esperar por algo melhor. Já Wraygunn nunca me convenceu e ainda não foi desta. Tenho que admitir que o que vi deste concerto foi o mais perto que esteve de me impressionar, mas continuo a achar que os Tédio Boys geraram projectos bem melhores do que este badalado grupo. No concerto, Paulo Furtado prometeu o minuto mais infernal do evento ao subir uma das traves que suporta a tenda de circo, mas esqueceu-se que há dois anos, no mesmo dia da sua actuação nesse mesmo palco, três bandas diferentes realizaram essa proeza fantástica: D3O, The Vicious Five e The (Internacional) Noise Conspiracy. Mais uma vez, a acrobacia deixou-me com um sabor a nova desilusão e lá fui eu divagar pelo recinto.
No palco principal, a actuação da noite ficou a cargo de Manu Chao, proporcionando aos presentes quase 3 horas de concerto alimentadas por inúmeros encores. Num dia que começou com África, passou por Espanha, pelo Brasil, pela Suécia e pela Jamaica, o fim só podia ser algo que reunisse o mundo inteiro e gritasse bem alto o sabor da globalização. Curiosamente, este artista que é geralmente apelidado de anti-globalização, é, a rigor, um símbolo da multiculturalidade. Agregando os sons de todos esses países, cantando em português, em castelhano, em francês e em inglês, entrapado num misto de roupa freak duma festa transe dos subúrbios com um barrete de camponês andino, Manu Chao mostrou a globalização da diversidade que defende e deixou à porta a do preconceito e da hegemonia. No palco, passou um verdadeiro furacão da abstracção comprometida que a música devia ser, deixando no ar a mensagem de que “outro mundo é possível”. Uma voz com a vida do terceiro mundo, guitarras a rasgar numa raiva Punk nada gratuita e carregada de alegria, foram o tónico perfeito para a explosão que se verificava nos quase 40 mil presentes com os corpos em movimento frenético. O poeta e ensaísta Hakim Bey talvez tenha razão: há Zonas Autónomas Temporárias a derrubar as restrições à dança frenética dos corpos e às ideias livremente gritadas ou impressas. A música de Manu Chao encaixa bem nessa definição ao proporcionar um verdadeiro local de autonomia temporária. Com este concerto sonhador e num dia carregado de alguma mensagem com conteúdo social, a pergunta que fica no ar é: aonde é que costuma andar esta juventude que se entrega com tanta facilidade aos ritmos do mundo e grita com tanto fulgor a ideia de um mundo melhor? Talvez no fundo duma garrafa de cerveja? Juventude ambígua esta.
Ainda antes deste concerto memorável passaram outro nomes gigantes pelo palco principal. O dia começou com a beleza e a jovialidade africana de Mayra Andrade, que carregou na sua voz rouca mas infantil a simpatia e o calor do continente negro num recinto iluminado pela luz tropical do pôr do sol. Em seguida, vieram os Ojos de Brujo com uma vocalista de pluma verde ao pescoço, saia de sevilhana e sapatos estrondosos, a debitar poesia sobre a liberdade ao som duma banda sonora cigana, com elementos de Ska e um espectáculo de sapateado com sevilhanas, que conseguiu, de forma exímia, pôr todos os festivaleiros a dançar e levantou a primeira nuvem de pó do festival.
Os I’m From Barcelona, que afinal são da Suécia, eram outro dos nomes esperados por alguns presentes e se em CD é bem desinteressante, ao vivo mostrou-se um projecto bem divertido com os seus cerca de 30 elementos. A banda tem uma entrada épica ao som de “Barcelona” dos Queen que permite que os elementos entrem todos numa invasão interminável. Parecia que o autocarro duma qualquer excursão tinha parado junto ao palco e fornecido um carregamento de turistas equipados com calções de banho e camas insufláveis para a piscina debaixo do braço. Apesar do palco parecer a estação de Santa Apolónia em hora de ponta, a presença dos músicos no palco era harmoniosa e divertida, sem que ninguém atrapalhasse ninguém: enquanto meia dúzia tocava, os restantes vinte faziam bolinhas de sabão, abraçavam-se e andavam aos pulos pelo palco a brincar com balões. O vocalista da banda, se repetir a brincadeira quando voltar a Portugal e este blog for famoso, receberá certamente o prémio Stage-Diving por ter decidido passear sobre o público em cima dum colchão da praia. Apesar das dezenas de indivíduos a cantar em cima do palco só se ouvia a voz de duas, e a música é tão pobrezinha que o que safou mesmo foi o circo que ali se instalou.
Gilberto Gil veio logo a seguir e, diga-se de passagem, não é todos os dias que temos a oportunidade de ver um Ministro da Cultura de guitarra na mão a entrar por um palco a dentro aos pulos. Apesar de não ter faltado ritmo à actuação do sr. Ministro, os pontapés na gramática deste sujeito bem cotado no governo brasileiro e as falhas na sua voz enfraquecida por uma certa rouquidão também não quiseram deixar de iluminar os festivaleiros. Mas a actuação foi interessante e estimulante o suficiente para me ter feito questionar sobre o fosso enorme que existe entre a espontaneidade e a genuinidade da música e o artifício da arte retórica e da mentira política. E custa a crer que alguém possa estar ao mesmo tempo nos dois lados com a consciência tranquila. Outra nota para os primeiros avisos dos seguranças aos flashes das máquinas fotográficas que disparavam do público, provavelmente na tentativa de evitar que alguma delas apanhasse uma carantonha feia que não fosse possível conjugar com o estatuto de ministro que o músico tem que assumir de vez em quando. Damian Marley foi o músico que antecedeu Manu Chao e, pelo menos para mim, deixou um gostinho a prestação insonsa. Apesar de se ter livrado bem do peso do pai que transportava às costas com uma entrada contagiante, o primeiro concerto reggae foi esmorecendo cada vez mais até se perder na banalidade. Algo afectado pelo estrelato, o que dificultou o trabalho dos fotógrafos de serviço presentes que apenas podiam fotografar com uma autorização prévia, Damian Marley deixou a impressão que está a anos de luz da imagem do pai e da mensagem que este deixou ao mundo. Nem as suas letras sobre justiça, sobre a paz e sobre o rastafarianismo chegaram para convencer do contrário pois ficaram diluídas na burocracia gerada para tirar uma única fotografia. Mas uma coisa é certa: é mesmo filho de Bob Marley e os olhos não enganam ninguém, são os do pai: semicerrados e inchados, talvez para se proteger duma nuvem de fumo insuspeita que pairava nas redondezas.
Contudo, o primeiro dia foi o mais equilibrado e o que registou melhores concertos dos quatro dias de festival. Manu Chao foi o ponto alto, mas no palco principal todas as bandas proporcionaram momentos interessantes e contagiaram de forma sublime os presentes que dançaram toda a noite de forma enérgica e frenética, fosse ao som das guitarras do reggae, do balanço africano ou da velocidade do punk/ ska.
Convidado especial do Stage-Diving e actual contribiudor da redacção mergulhadora
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