Numa precipitada decisão, acabei por ir assistir ao espectáculo dos Mão Morta em que a obra de Isidore Ducasse, «Os Cantos de Maldoror», é interpretada. Isto na quinta-feira, quando eles assentaram o espectáculo em Leiria. E valeu a pena:
Falamos de uma produção ponderada até ao menor detalhe; nada falha naquele concerto/naquela peça. Todo o cenário está montado segundo uma lógica, e é de uma densidade informativa (à semelhança do livro) que é humanamente impossível captar todos os pormenores de algo desta dimensão. Não é, claro, da dimensão de um grande espectáculo, digno de aparecer na televisão, dos que têm verbas quase ilimitadas. Mas também não houve necessidade.
Ficou uma encenação perfeita (até porque falamos de um livro que, e vou-me repetir, por ser de uma densidade incrível e com situações imensamente imaginadas, quase impossíveis de transpor para a realidade, por si só é um problema para o trabalho de o transformar numa peça de teatro, ou em algo semelhante). Algo perturbadora - como Isidore Ducasse desejaria, certamente -, não só pelas letras, mas também pelos vídeos e pelas caracterizações de toda a banda, que estavam expressivas e horrendas, apesar de isso só se notar devidamente a seu tempo: Maldoror funciona bem, tal como um relógio. Os vídeos eram de uma simplicidade quase ingénua, partilhando um aspecto mais infantil da obra com o público; aspecto que só era interrompido quando Adolfo Luxúria Canibal se apoderava da imagem através de uma câmera, que usava para realçar os mais grotescos pormenores da peça.
Liricamente, os excertos do texto (que, por serem tão poucos, provam a dimensão d'«Os Cantos de Maldoror», a todos os níveis) foram escolhidos de forma brilhante e provocadora, atingindo alguns pontos sensíveis da realidade portuguesa: há partes que são agressões aos tabus montados pelos meios de comunicação social nos últimos anos, como a pedofilia, e outras que colocam em causa, subtilmente, alguns sentimentos patrióticos (mas esta posição já se trata de uma visão minha do espectáculo). Fica claro: os Mão Morta nada devem a ninguém, dizem o que há a dizer. Se a obra já é chocante, eles escolheram os pontos que podem chocar ainda mais.
Musicalmente, é Mão Morta. E Mão Morta é um mundo, está provado: reinventam-se, crescem, evoluem - não têm um estilo musical, são um estilo musical. Todas as músicas constroem um bom cenário para o que está a ser declamado; quem conhece o trabalho da banda, sabe que, ao contrário do que é 'natural', os Mão Morta fazem música a partir das letras. Maldoror traz uma satisfação incrível, pois temos quase a sensação que os anteriores trabalhos dos bracarenses foram uma preparação para algo desta envergadura. Não será assim, mas ajudou certamente. Maldoror é um trabalho conceptual memorável e, até agora, inigualável (espero, cheio de dúvidas, que alguém ultrapasse uma obra tão genial quanto esta).
Quem ainda não ponderou ir assistir ao espectáculo, devia fazê-lo. Os Mão Morta estão melhores do que aquilo que alguma vez eu conseguiria imaginar ser possível, provando que são, realmente, a banda mais inovadora da cena actual portuguesa. Provaram que não há limites para a criação de arte ao escolher interpretar uma das obras mais singulares na literatura - e não se ficaram pela música, foram ao teatro, à vídeo-arte, etc. O mal de Maldoror está vivo e a assombrar os teatros de Portugal através dos seres mais humanos: tudo faz sentido.
Por enquanto, não faço 'spoils'. Mas, daqui a uns tempos, hei-de colocar uma ou outra música do álbum 'online'. Fiquem à espera.
5 comentários:
pois, era isso e virem ao porto apresentar isso também.
eles também não vieram a coimbra, como já era hábito. :/
tive de me chatear e de ir atrás deles, até leiria.
"Fiz um pacto com a prostituição para semear a desordem nas famílias."
"Estou sujo. Roído de piolhos. Os porcos, quando olham para mim, vomitam."
"deve-se deixar crescer as unhas durante quinze dias..."
e depois o que vem é incrível ^^
Para mim (que não assisti ao espectáculo) é um álbum brutal. Vindo da melhor banda de Portugal (sim atrevo-me a dizê-lo).
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